Shylock é o personagem da comédia de Shakespeare O Mercador de Veneza (1596), judeu usurário avarento que empresta dinheiro a António, mercador de Veneza, exigindo a fiança de uma libra da sua carne, que vai ser exigida quanto este entra em insolvência. A causa transita para tribunal, sendo a sentença desfavorável a Shylock: no contrato que celebrou com António conspirou contra a vida de um cidadão, ficando segundo a lei obrigado a entregar todos os seus bens, a meias, ao ofendido e ao Estado.
Para cumular a sua desgraça, Shylock vê a sua filha
Jessica, perdida de amores por Lourenço, amigo de António, sair da casa
paterna, tornar-se cristã e levar consigo as jóias da sua herança. Como tinham
para Shylock um valor afetivo inestimável, além de todo o preço, pois
simbolizavam o amor do pai por uma filha, que ora se abolia nesse ato, turbou
ainda mais a fúria de Shylock, somando desgraça sobre desgraça.
Esta história, que o Teatro de Almada levou à cena
pelas mãos do saudoso João Benite, continua a ser uma boa proposta para
pensarmos a ordem, ou desordem, em que estamos mergulhados. Pois os discípulos
de Shylock hoje procedem com igual arrogância, emprestando sob hipoteca da
carne dos seus credores. A resposta hoje não pode apenas ser a denúncia moral:
tem que passar pelas armas da ação coletiva, organizada e esclarecida.
Trecho
de O mercador de Veneza:
Acto 3, Cena 3
Veneza. Uma rua.
[Entram Shylock, Salarino, António e
o carcereiro]
SHYLOCK
Carcereiro, olha para ele: não me
fales de misericórdia.
Este é o louco que emprestava
dinheiro grátis:
Carcereiro, olha para ele.
ANTÓNIO
Ouve-me mais uma vez, bom Shylock.
SHYLOCK
Eu tenho a minha fiança. Não fales
contra a fiança.
Jurei uma jura de que terei a minha
fiança. [5]
Chamaste-me cão sem teres motivos
Mas, já que sou um cão, cuidado com
as minhas presas.
O Duque terá que me conceder
justiça. Pergunto-me
Se tu, mau carcereiro, serás tão
amável
Que o faças sair da prisão a seu pedido.
[10]
ANTÓNIO
Peço-te, ouve-me falar.
SHYLOCK
Eu terei a minha fiança. Não te
quero ouvir falar.
Eu terei a minha fiança, e por isso
não fales mais.
Não farás de mim um bobo compassivo
de olhos mortos.
A abanar a cabeça, a desistir, a
suspirar, e ceder [15]
A intercessores cristãos. Não
insistas.
Não quero conversas, terei a minha
fiança.
[Sai]
SALARINO
É o mais insensível animal
Que alguma vez andou entre os
homens.
ANTÓNIO
Deixa-o em paz:
Não o seguirei mais com pedidos
inúteis. [20]
Ele quer a minha vida. Os motivos
conheço-lhos bem:
Muitas vezes livrei das suas
livranças
Muitos do que às vezes a mim se
lamentavam,
É por isso que me odeia.
SALARINO
Tenho a certeza de que o Duque
Nunca permitirá que esta fiança seja
paga. [25]
ANTÓNIO
O duque não pode impedir o curso da
lei:
Por causa dos privilégios que os
estrangeiros têm
Connosco em Veneza. Porque se a
negar
Em muito prejudicará a justiça neste
Estado,
Visto que o negócio e lucro da cidade
[30]
Compreende o de todas as nações. Por
isso, vai:
Estas lamentações e perdas
cansaram-me tanto,
Que muito dificilmente poderei
dispensar meio quilo de carne
Amanhã, ao meu sanguinário credor.
Carcereiro, vamos. Queira Deus
Que Bassânio volte [35]
Para me ver pagar-lhe a dívida, e
assim não me importarei.
[Saem]
William Shakespeare, O mercador de Veneza,
trad. Helena Barbas, Março de 2002 (edição
online), pp. 52-3
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