A nossa situação de calamidade pública, que nos colocou na situação de assistência financeira, foi o fruto de múltiplos fatores, mas devo destacar sobretudo a desordem financeira da gestão pública, ao longo da última década, de que PS e PSD são os responsáveis, um conjunto de decisões no âmbito europeu que nos forem desfavoráveis e, finalmente, a desregulação do mercado financeiro.
Agora que a as contas públicas
estão, de novo, a ser auditadas pela Troika, julgo vir a propósito um texto de
Kant, seguido de comentário, que se destina a mostrar que as taxas de juro
cobradas pelo empréstimo são incompatíveis com o relançamento da economia e o
Estado Social, sendo especulativas, legitimando o direito de resistência do
Estado e da sociedade civil. Embora a margem de sucesso da empresa seja curta,
vale a pena o combate, pelas armas da razão persuasiva e as da ação resistente.
Eis o texto com comentário:
“Artigos Preliminares
para a paz perpétua entre os Estados
(…) 4. Para fomentar a
economia de um país (melhoria dos caminhos, novas colonizações, criação de
depósitos para os anos maus de fornecimentos, etc.) fora ou dentro dos Estado,
esta fonte de financiamento não levanta suspeitas.
Mas o sistema de crédito, como instrumento/de
oposição das potências entre si, é um sistema que cresce desmesuradamente
e constitui sempre um poder financeiro para exigir no momento presente (pois
certamente nem todos os credores o farão ao mesmo tempo) as dívidas garantidas
– a engenhosa invenção de um povo de comerciantes neste século – a saber, é um
tesouro para a guerra que supera os tesouros de todos os outros Estados tomados
em conjunto e que só pode esgotar-se pela eminente queda dos impostos (que, no
entanto, se manterão ainda durante muito tempo, graças à revitalização do
comércio por meio da retroação deste sobre a indústria e a riqueza).
A
facilidade para fazer a guerra, unida à tendência dos detentores do poder que
parece ser congénita à natureza humana, é pois, um grande obstáculo pata a paz
perpétua; para obstar a isso, deveria, com maior razão haver um artigo
preliminar porque, no fim, a inevitável bancarrota do Estado deve implicar
vários outros Estados sem culpa, o que seria uma lesão pública destes últimos.
Por conseguinte, outros Estados têm o direito/a aliar-se contra semelhante Estado
e as Suas pretensões.”
(cf. E. Kant, A paz Perpétua e outros Textos, Ed. 70,
col. Textos Filosóficos, trad. de Artur Morão, Lisboa, 1989, pp. 122-123)
Comentário:
Kant, quando escreveu
isto (1796) testemunhava já os efeitos deletérios que o sistema financeiro,
colocado ao serviço da especulação em vez de instrumento do desenvolvimento
económico, comportava como fator decisivo na deflagração das guerras.
Este tópico é
consequente com o princípio do equilíbrio entre as Nações da Europa, que fora estatuído
no tratado de Vestefália (1648) na intenção de prevenir as guerras. Por isso, a
situação referida por Kant entra em rota de colisão com aquele princípio. E
assim assiste aos Estados afetados o direito de coalisão contra o Estado
prevaricador (“…outros Estados têm o direito/a aliar-se contra semelhante
Estado e as suas pretensões”).
O opúsculo de filosofia
política onde se encontra o ponto em análise visava estabelecer um conjunto de
princípios, a constitucionalizar, que assegurassem o direito civil no âmbito do
Estado, o direito que regula a relação dos Estados e o direito de âmbito
cosmopolita, ligado à criação de um Estado Mundial.
Mas, a referência ao
papel da especulação, conducente à bancarrota dos Estados, é um assunto que o
texto destaca: “… para obstar a isso, deveria, com maior razão haver um artigo
preliminar porque, no fim, a inevitável bancarrota do Estado deve implicar vários
outros Estados sem culpa”. O que nos permite afirmar que Kant, já no seu tempo,
era um crítico severo do sistema financeiro ao serviço da especulação. Se fosse
vivo hoje, não toleraria o tipo de mundialização em curso, em que as guerras
são ainda mais insidiosas e invisíveis. Mas não menos mortais!
O direito de resistência
dos Estados lesados é assim legítimo, porque só ele pode fazer regredir esta
causa determinante das guerras. Cada cidadão deve neste processo encontrar os
modos da sua participação, que deve ser esclarecida, partilhada e eficaz.
Adenda: Kant foi um filósofo
alemão (1724-1804), adepto do movimento das Luzes, que através da sua crítica se
debruçou sobre os vários problemas inerentes à experiência humana. Assim, a sua
teorização abrange os temas do conhecimento, da moral, da estética, da
religião, do direito, da política, da cultura, da educação, fornecendo um
horizonte filosófico muito vasto. Este é um legado impressionante, pela sua ousadia
e rigor analítico, que obrigou os filósofos posteriores a tomá-lo muito a sério
como uma fonte necessária para as suas indagações, prolongando-a ou recusando-a
em alguns pontos. É um “maître à penser”, ainda hoje.
Quem não conheça, não
perde o seu tempo. A Net tem imensos artigos sobre aspetos da sua obra, além de
se encontrar em alemão uma parte significativa desta.
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