I – Da prudência política para a defesa do Termal como bem público
O Hospital Termal Rainha D. Leonor surgiu, na sua
fundação e na sua refundação, sob a égide do Estado. No seu percurso, passou
por períodos sombrios de decadência (antes da refundação) e de apogeu (desde os
fins do séc. XIX até ao terceiro quartel do séc. XX), assim como transitou da
tutela eclesiástica inicial (Cónegos
Seculares de S. João Evangelista) para a esfera do poder central, em 1775, ao
tempo do Marquês de Pombal.
Torna-se imperioso hoje, quando o seu destino é
toldado pelos ventos de incerteza quanto ao seu governo e quanto à sua
viabilidade, meditar as frases lapidares com que se conclui a inscrição que se
encontra do lado direito do Pocinho.
Essas frases são um convite emanado da benevolência
real, assumida explicitamente por D. João V, dirigido a cada um de nós, como legatários
de um bem público ao serviço de todos, preservando-o e renovando-o, e relativamente
ao qual a nossa responsabilidade se encontra investida, aquém do nosso
arbítrio:
“Fruere, hospes,
imitare quantum potueris;
et non te paenitebit.”
(Usufrui tu, que a esta casa te acolhes,
E imita-os [a D. Leonor e a D. João V] quanto puderes;
e não te arrependerás.)
Para corresponder ao desafio, cada um deve revestir-se
de uma alma de mil manhas, como a do lendário Ulisses, pois esta ajudou-o nas
dificuldades a não se deixar manietar pelo canto das sereias, regressando a
casa.
Com esta
alma, os caldenses são capazes hoje de não tergiversar em relação à sua responsabilidade nem abdicar face às soluções que o poder político
ou administrativo pretenda impor, partindo da premissa de que essas soluções, num
passe de mágica, tout court, são para
pegar ou largar.
Pois, a maior parte das vezes, se essas propostas não
forem devidamente fundamentadas por quem as propõe nem assumidas com ponderação
por quem as aceita, em todas as suas previsíveis
implicações, pode estar-se a cavar a sepultura de um património coletivo já
moribundo no engano de que o doente vai entrar num processo de recuperação da
sua saúde.
Assim, ter à partida uma atitude de suspeita em
relação ao que respeita à vida das comunidades é um ingrediente inerente a uma
cidadania esclarecida e ativa, que exige ser informada e ouvida em tudo o que
lhe diz respeito.
No caso da decisão a tomar pela Câmara em relação à
aceitação da proposta da DGEG como concessionária da exploração das águas
minerais do Hospital, matéria em discussão nas duas últimas Assembleias
Municipais (a prosseguir a 20 de Agosto de 2013 em ordem a um consenso), não
julgo estarem reunidas condições objetivas nem subjetivas para, no momento, os
deputados municipais assumirem qualquer compromisso, nem a favor nem contra.
Com efeito, o poder local existente manifesta
voluntarismo em relação ao problema do Hospital Termal, mas este só por si não
é suficiente se não estiver enquadrado num plano de desenvolvimento da Cidade e
do Município no seu todo (que não existe!) onde esteja definido claramente o
lugar do termalismo neste âmbito. Também não existe uma clarificação do lugar que
a política do Ministério da Saúde reserva para o termalismo, em geral. E,
olhando do campanário e até para mais além, não se entrevê “massa crítica”
esclarecida nestes domínios, capaz de conceber e executar um plano sustentável,
articulado, diversificado e moderno, de relançamento do termalismo, pelo que
não dispõe no momento a autarquia de know how que lhe permita responder
positivamente à proposta da DGEG.
Sei que qualquer caldense tem orgulho no seu
património termal, e que sente com mágoa e muita raiva a incapacidade que tem
havido para encontrar a mais adequada resposta para o seu desenvolvimento,
expansão e diversificação. Mais se afirma este sentimento se meditarmos no
significado e no valor que o termalismo vai tomando, em outros concelhos e pelo
mundo fora.
Forneço a seguir alguns exemplos desta consideração.
II – O Hospital Termal como matriz da construção de uma Cidade Termal
A OMS reconhece a medicina termal para o tratamento de
algumas situações patológicas, na base de conhecimentos empíricos das ações
terapêuticas, das águas minerais naturais, que constituem a “tradição termal”.
Desde 1986, esta Organização confere um estatuto oficial à Federação
Internacional do Termalismo e reconhece um papel essencial à medicina termal,
com validade científica.
O termalismo é ainda recomendado pela OMS para o
tratamento de doenças crónicas.
O Termalismo no seu sentido lato inclui o conjunto dos
meios medicinais, sociais, sanitários, administrativos e de acolhimento com o
propósito da utilização das águas minerais, do gás termal e de lamas com fins
terapêuticos. A palavra Termalismo refere-se à indicação e utilização de uma
água termal com capacidades “curativas” reconhecidas pela classe médica,
através dos seus efeitos químicos, térmicos e mecânicos.
Comparando a taxa de utilização termal em Portugal com
outros países europeus, como França, Alemanha e República Checa, constatamos
que ela se cifra em valores muito mais reduzidos.
Em comparação com o que disse, Caldas da Rainha, desde
há muitos anos, assistiu à lenta agonia do seu Hospital Termal, havendo que
responsabilizar a autarquia, em grau talvez menor, e o Estado, que não souberam
encontrar sinergias que valorizassem a riqueza que temos, potenciando-a e
modernizando-a.
A discussão em curso na Assembleia Municipal sobre os
rumos a seguir em relação ao Termal pôs em evidência a clivagem que separa a
direita local e as formações à sua esquerda: revitalizar a ação do Termal,
assumindo o poder municipal essa função, com a participação eventual da
iniciativa privada, ou manter o Estado na tutela do termal, esperando que daí
soprem ventos de mudança.
Julgo que seria bom conhecer a história de algumas
termas nacionais, que conseguiram sair da letargia em que, por diversas razões,
caíram, sendo hoje bons exemplos a pôr diante dos olhos.
Um bom exemplo é-nos dado pela história recente da
estância termal de S. Pedro do Sul, que implementou há uns anos uma estratégia diversificada
de revitalização e expansão da sua oferta termal, mantendo seu espaço Termal
como emblema simbólico inviolável à usura privada.
Com efeito, em
1986, as termas de S. Pedro do Sul encontravam-se na situação em que as das
Caldas se encontram hoje: captações das águas obsoletas, ausência de
urbanização adequada do local termal; falta de investimento e investigação no
setor…
Depois desta
data, foram criados novos balneários, por comparticipação do Estado, e também foi
renovado o balneário que se encontra na origem do termalismo local, o Rainha D.
Amélia. Quando a autarquia se propunha vender este balneário, em 2006, a
oposição das populações fez o poder local recuar, passando a reconhecer o direito
inalienável daquele património, pela carga simbólica inerente à sua memória
histórica.
Assim, a proposta
feita pela DGEG à Câmara de concessão da exploração das águas minerais do
Hospital Termal, para além das razões que invoca, pode indicar que aquela
Direção parte do suposto que o Estado Central, através do SNS, não tem
intenções de estar diretamente implicado na salvaguarda deste património.
Podemos pensar, atendendo até à experiência recente, que esta transferência do
ónus paras as costas da autarquia é acertada, mas fica sempre a dúvida sobre se
é melhor permanecer no mesmo modelo (o que significaria pensar que este
recuperaria um enfoque diferente sobre o problema, pois só assim tal seria aceitável)
ou se o poder autárquico, tal como o temos, é capaz de mobilizar recursos
(humanos, técnicos, políticos) de modo eficaz e permanente, de modo a exercer
convenientemente a tutela do património termal.
Por isso, a decisão
a tomar sobre esta proposta deve estar fundamentada em sólidos argumentos,
recorrendo a casos de natureza similar, e ser prudente, não devendo ser tomada
neste momento, não apenas pela razão política de estarmos num período
pré-eleitoral, sem sabermos qual a força partidária que será vencedora, mas
também por ser necessário abrir o assunto à participação dos cidadãos, devendo
esta opinião ser tomada em consideração na decisão política.
Qualquer decisão
deve estar balizada pelos seguintes parâmetros: manter o Termal como património
público, revitalizando-o e conservando a sua vocação terapêutica primitiva; e deixar
em aberto a possibilidade de construção de novos espaços termais, que possam
diversificar e complementar a ação do Hospital, podendo estes ser abertos à
iniciativa privada.
A proposta da
DGEG de concessionar à Câmara o aquífero, nos moldes em que o propõe, poderá eventualmente
ser uma boa solução depois de se fazer um longo percurso de clarificação das
cláusulas contratuais a estabelecer, não havendo no momento condições para a
aceitar.
Mas só será uma
boa solução se estiver ao serviço da manutenção e revitalização do Hospital Termal
no âmbito público, sem alijar a sua pertença ao SNS. Deixo em suspenso a forma
jurídica desse acordo, bem como a instituição a criar para administrar o
Hospital: a figura de uma empresa Municipal é uma possibilidade que não deve
ser excluída, desde que funcione segundo regras de transparência democrática (foi
esta a solução encontrada, por exemplo, em S. Pedro do Sul). Outras soluções haverá,
que deixo à inventiva dos juristas e dos cidadãos. Fica também pendente a
figura jurídica a definir, de acordo com a lei, que exerça a função de
regulação deste setor.
III – Rumos imediatos de ação a prosseguir e a assumir por todos os atores políticos
Assim, partindo
da recusa da aceitação da proposta da DGEG, proponho à deliberação desta
Assembleia:
1.
A informação à
DGEG de que, de momento, a autarquia não está em condições de anuir à proposta
que lhe é feita, explicitando as razões, nomeadamente por estarmos a iniciar um
período pré-eleitoral, que torna mais difícil a construção de consensos;
2.
A mobilização das várias formações partidárias para questionarem
no Parlamento o pensamento do Governo e do Ministério da Saúde sobre o modo e o
grau de implicação na promoção do termalismo na nossa cidade, o que exige tomar
em linha de conta a sustentabilidade e a recuperação das funções terapêuticas
do Seu Hospital Termal;
3.
A constituição de um grupo ad hoc, que deve integrar personalidades com conhecimento na
matéria do termalismo com a tarefa de elaboração de um plano, a articular com
um plano de desenvolvimento da Cidade, de revitalização e diversificação do
termalismo. Neste equipa, deviam estar presentes: o Doutor João Serra; o Doutor
arquitecto Jorge Mangorrinha, o Dr. Mário Gonçalves, o dr. António Curado, o
Dr. Jorge Varandas, o Dr. José Luíz de Almeida Silva, o arquiteto Rui
Gonçalves, podendo a equipa agregar outros especialistas;
4.
A discussão pública deste plano após a sua publicação,
a que se seguiria a aprovação em Assembleia Municipal;
5.
E a monitorização permanente e sistemática da execução
deste plano, que o poder autárquico (qualquer que ele seja!) devia assumir como
prioridade política do seu trabalho.
Vasco Tomás
Muito boa reflexão, se me permites Vasco.
ResponderEliminarPode discordar-se de um ou outro aspecto, mas tem uma base bem interessante.
Paulo Prudêncio.