A UE tem vindo a adotar um conjunto medidas de coordenação
mais estreita com os governos nacionais, de modo a construir uma maior integração
económica, monetária, orçamental e política e a contribuir para alavancar o
crescimento e o emprego. Por exemplo, tem legislado para melhorar a
fiscalização e o controlo dos orçamentos e da dívida pública dos países da UE e
para intensificar a fiscalização nos países da Zona Euro com défices
orçamentais excessivos. Mas este afã legislativo é tomado pelas elites, longe dos cidadãos,
como se um governo de regras fosse suficiente para a construção de uma Europa
democrática.
O filósofo Habermas escreveu um artigo “Europa am Scheideweg”,
publicado no jornal Handelsblatt a 17 de Junho de 2011, que foi traduzido e
publicado no Le Monde a 26 de Outubro, sob o título “Rendons l’Europe plus
démocratique.”Dada a relevância e a atualidade
do texto, que visa contribuir
para um repensar do funcionamento da UE tendo em vista um aprofundamento da democracia
europeia, decido republicá-lo, a partir de tradução do texto francês, dado não
ter tido a divulgação que merecia no nosso meio.
“A
curto prazo, a crise requer uma muito maior atenção. Mas para além
disto, os atores políticos não deveriam esquecer os defeitos de construção que
estão na base, nos fundamentos, da união monetária e que não poderão ser
levantados de outro modo que não seja através de uma união política
adequada: falta à União Europeia as competências necessárias para a
harmonização das economias nacionais, que apresentam divergências drásticas nas
suas capacidades de concorrência.
“O
Pacto para a Europa” de novo reforçado não faz nada mais do que reforçar
um já velho defeito: os acordos não vinculativos no círculo dos chefes de
governo são ou sem nenhum efeito ou não são democráticos, e devem
por esta razão ser substituídos por uma institucionalização incontestável das
decisões comuns. O governo federal alemão tornou-se o acelerador de uma
dessolidarização que atinge toda a Europa, porque durante muito tempo
tem fechado os olhos em face da única saída construtiva que até mesmo o “Frankfurter
Allgemeine Zeitung” tem entretanto descrito pela fórmula lacónica: “Mais
Europa”. Todos os governos em causa se encontram desamparados e
paralisados perante o dilema entre por um lado os imperativos dos grandes
bancos e das agências de notação e, por outro lado, o seu temor perante a perda
de legitimação que os ameaça junto da sua população frustrada. O
incrementarismo insensato está a trair a falta de uma
perspetiva mais vasta.
Desde
o momento em que o embedded
capitalism terminou e
que os mercados globalizados da política se dissiparam, e torna-se cada
vez mais difícil para todos os Estados da OCDE estimular o crescimento
económico e garantir uma justa repartição do rendimento bem como
garantir a Segurança Social à maioria da população. Depois do
desaparecimento das taxas de câmbio fixas, este problema foi desativado pela
aceitação da inflação. Sendo dado que esta estratégia provoca
custos elevados, os governos utilizam cada vez mais a escapatória das
participações nos orçamentos públicos financiadas pelo crédito.
A
crise financeira que dura desde 2008 também fixou o mecanismo da dívida estatal
às custas das gerações futuras; e, entretanto , não se vê como é que
as políticas de austeridade – difíceis a impor em política interna
– poderiam ser colocadas em acordo sobre o longo prazo com a
manutenção do nível de um Estado social suportável. As revoltas da juventude
são uma advertência das ameaças que pesam sobre a paz social. Pelo menos,
reconheceu-se, nestas circunstâncias, que o desequilíbrio entre os imperativos
do mercado e a capacidade reguladora da política é o verdadeiro desafio a
enfrentar. Na zona euro, um esperado “governo económico” deveria voltar a dar
uma força nova ao pacto de estabilidade desde há muito tempo esvaziado.
As
representações “de um federalismo executivo” de um tipo específico refletem o
temor das elites políticas em transformar o projeto europeu, até aí
praticado para lá das portas fechadas, num combate de opinião
ruidoso e argumentado, obrigando a arregaçar as mangas e que seria público.
Perante o peso dos problemas, esperar-se-ia que os políticos, sem perda
de tempo e sem condições pusessem as cartas europeias
sobre mesa a fim de se ilustrar de maneira intensiva e
empenhada à população a relação entre os custos a curto prazo e a
sua verdadeira utilidade, ou seja sobre o significado histórico do projeto
europeu.
Deveriam
ultrapassar o seu medo das sondagens sobre o estado da opinião pública e
terem confiança na capacidade de persuasão dos bons
argumentos. Em vez disso, degradam-se com um populismo que eles mesmos
favoreceram pela ocultação de um tema complexo e mal-amado. Sobre o
limiar entre a unificação económica e a união política da Europa, a política
parece reter o seu fôlego e meter a cabeça debaixo dos ombros . Porquê
esta paralisia? É uma perspetiva mergulhada no século XIX que impõe
a resposta conhecida do demos:
não existiria povo europeu; é por isso que uma união política que mereça este
nome está construída sobre a areia. A esta interpretação,
quereria eu contrapor uma outra: a fragmentação política duradoura no mundo e
na Europa está em contradição com o crescimento sistémico de uma
sociedade mundial multicultural, e bloqueia todo e qualquer progresso na
civilização jurídica constitucional das relações de poder estatais e sociais.
Sendo dado que até aí a UE foi levada e monopolizada pelas
elites políticas, uma perigosa assimetria daí resultou – entre a participação
democrática dos povos com os benefícios que os seus governos “daí retiram” para
eles mesmos sobre a cena afastada de Bruxelas, e a indiferença, ou mesmo a
ausência de participação dos cidadãos da UE tendo em conta as decisões do seu
Parlamento em Estrasburgo. Esta observação não justifica um substancialização
“dos povos”. Só o populismo de direita continua a projetar a caricatura de
grandes temas nacionais que se fecham uns aos outros e bloqueiam qualquer
formação de vontade que exceda as fronteiras. Depois de cinquenta anos de
imigração do trabalho, os povos estatais europeus, perante o seu crescente
pluralismo étnico, de linguagem e religioso, não podem continuar a
imaginarem-se como sendo unidades culturais homogéneas. E a Internet torna
todas as fronteiras porosas. Nos estados territoriais, foi necessário começar
por instalar o horizonte fluido de um mundo da vida partilhado sobre os grandes
espaços e através de relações complexas, e preenchê-lo por um contexto
comunicacional que é da competência da sociedade civil, com o seu sistema
circulatório de ideias. É evidente que isso se pode fazer apenas no
âmbito de uma cultura política partilhada que continua a ser bastante
vaga. Mas mais as populações nacionais tomam consciência, e mais os meios de
comunicação social levam à consciência a que profundidade as
decisões da UE influenciam sobre o seu dia a dia , mais crescerá o interesse
que encontrarão em fazer igualmente uso dos seus direitos democráticos
como cidadãos da União.
Este
factor de impacto tornou-se tangível na crise do euro. A crise força também, de
má vontade, o Conselho a tomar decisões que podem pesar de maneira desigual
sobre os orçamentos nacionais. Desde o dia 8 de Maio de 2009, este ultrapassou
um limiar pelas suas decisões de resgate e de possíveis
modificações da dívida, assim como por declarações de intenções com o propósito
de uma harmonização em todos os domínios que têm a ver com a concorrência (em
política económica, fiscal, de mercados de trabalho, social e cultural).
Para
além deste limiar levantam-se problemas de justiça na repartição do
rendimento , porque com a passagem de uma integração “negativa” a uma
integração “positiva”, os pesos deslocam-se de uma legitimação do seu
output para uma legitimação nos seus inputs . Seria por conseguinte
conforme com a lógica deste desenvolvimento que os cidadãos estatais que devem
sofrer as mudanças de distribuição dos encargos para além das fronteiras
nacionais, tenham a vontade de influenciar democraticamente, no seu papel de
cidadão da União, sobre o que os seus chefes de governo negociam ou decidem
numa zona jurídica cinzenta.
Em
vez disto, verificamos táticas dilatórias pelo lado dos
governos, e uma rejeição de tipo populista do projeto europeu como um
todo pelo lado das populações. Este comportamento auto-destruidor explica-se
pelo facto de as elites políticas e os meios de comunicação social hesitarem em
tirar as consequências razoáveis do projeto constitucional. Sob a pressão
dos mercados financeiros impôs-se a convicção de que, aquando da introdução do
euro, um pressuposto económico do projecto constitucional tinha sido
negligenciado. A EU não pode afirmar-se contra a especulação financeira a não
ser que obtivesse as competências políticas de orientação que são necessárias
para garantir pelo menos no coração da Europa, ou seja entre os membros da zona
monetária europeia, uma convergência do desenvolvimento económico e social.
Todos
os participantes sabem que este grau “de colaboração reforçada” não é possível
no âmbito dos tratados existentes. A consequência “de um governo económico”
comum, que tanto satisfaz também o governo alemão, significaria que a
exigência central da capacidade de concorrência dos países da Comunidade
Económica Europeia se estenderia bem para além das políticas financeiras e
económicas até aos orçamentos nacionais, e interviria até ao ventrículo do
coração, nomeadamente no que diz respeito ao direito orçamental dos Parlamentos
nacionais.
Se
o direito válido não deve ser transgredido, de maneira flagrante, então esta
reforma em sofrimento só é possível se for feita através de uma transferência
de outras competências dos Estados-Membros para a União. Ângela Merkel e
Nicolas Sarkozy concluíram um compromisso entre o liberalismo económico alemão
e o estatismo francês que tem todo um outro conteúdo. Se vejo a
questão de modo correto, estes procuram consolidar o federalismo
executivo implicado no tratado de Lisboa numa dominação intergovernamental do
Conselho da Europa que é contrária ao próprio tratado. Tal regime permitiria
transferir os imperativos dos mercados para os orçamentos nacionais sem nenhuma
legitimação democrática própria.
Para
o efeito, seria necessário que acordos concluídos na opacidade, e desprovidos
de forma jurídica, sejam impostos através de ameaças com sanções e de
pressões sobre os Parlamentos nacionais privados do seu poder. Os chefes de
governo transformariam assim desta maneira o projeto europeu no seu contrário:
a primeira comunidade supranacional democraticamente legalizada tornar-se-ia
num arranjo efetivo, porque oculto, de exercício de uma dominação
pós-democrática. A alternativa encontra-se na continuação consequente da
legalização democrática da UE. Uma solidariedade assente na cidadania que
se estenda a toda a Europa não se pode formar se, entre os
Estados-Membros, ou seja nos possíveis pontos de rutura, se consolidam as
desigualdades sociais entre as nações pobres e as nações ricas.
A
União deve garantir o que a Lei fundamental da República Federal Alemã
considera (art.. 106, parágrafo 2): “a homogeneidade das condições de
vida”. Esta “homogeneidade” liga-se somente a uma estimativa das
situações de vida social que sejam aceitáveis do ponto de vista da justiça de
repartição e não estão ligadas a nenhum nivelamento das
diferenças culturais. Ora, uma integração política apoiada sobre o bem-estar
social é necessária para que a pluralidade nacional e a riqueza cultural
do habitat “da velha Europa” possam ser protegidas do nivelamento de uma
globalização com uma progressão de tensão.”
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