domingo, 23 de dezembro de 2012

À Espera de Godot: uma alegoria da opressão e da submissão voluntária



 Neste excerto da peça À espera de Godot que escolhi, pretendo destacar a relação de dominação que continua a existir tanto entre os indivíduos como entre as classes e as Nações. Esta relação manifesta-se alegoricamente nas personagens de Pozzo (o dono) e de Lucky (o criado), que funcionam como tipos que enquadram as relações sociais e políticas.
O que aqui se encena continua a lançar-nos o desafio enorme de não pactuar com tudo o que na relação dos homens se encontra pervertido pela opressão (económica, social, cultural) de uns sobre os outros. Enquanto isto acontecer, o Natal para todos é uma miragem.
Quando se rompe este ciclo infernal da prepotência de uns sobre os outros? Como pode a verdadeira “semelhança” entre os homens tomar lugar no mundo? A sátira de Pozzo que no texto se faz, que é a minha, é uma brecha. Que se tem de aprofundar pelos meios da ação esclarecida dos que estão amordaçados pelos seus donos.
 “(….)
VLADIMIR. - Cada um é como é.
ESTRAGON. - E não adianta dar voltas.
VLADIMIR. - O fundo não muda.
ESTRAGON. - Não há nada que fazer. (Oferece a VLADIMIR o que sobra da cenoura) Queres acabar isso?
(Ouve-se muito perto um grito terrível. ESTRAGON solta a cenoura. Ficam rígidos e depois precipitam-se para as laterais. ESTRAGON detém-se a meio caminho, volta para trás, agarra a cenoura, guarda-a no bolso, equilibra-se para VLADIMIR, que o espera, volta a parar, retorna, pega no seu sapato e corre a unir-se a VLADIMIR. Agarrados pela cintura, a cabeça sobre os ombros, de costas em ameaça, esperam.
(Entram POZZO e LUCKY. Aquele dirige este através de uma corda em volta do pescoço, de forma que, ao princípio só se vê LUCKY, seguido da corda, suficientemente comprida, como se pudesse chegar ao centro da cena, antes que POZZO apareça pela lateral. LUCKY leva uma pesada mala, uma cadeira desmontável, um cesto com comida e, no braço, um casaco, POZZO, um látego.)
POZZO. - (Dentro.) Mais rápido!
(Estalando o látego. Entra POZZO. Cruzam a cena. LUCKY passa ante VLADIMIR e ESTRAGON e sai. POZZO, ao ver VLADIMIR e ESTRAGON, detém-se. A corda estende-se. POZZO tira-a violentamente.)
 Atrás!
(Ruído de queda. LUCKY caíu com toda a sua carga. VLADIMIR e ESTRAGON olham-no, vacilando entre socorrê-lo e o temor de meter-se no que não lhes diz respeito. VLADIMIR avança um passo para LUCKY, ESTRAGON agarra-o pela manga.)
 VLADIMIR. - Deixa-me!
ESTRAGON. - Tem calma.
POZZO. - Cuidado! É mau. (ESTRAGON e VLADIMIR olham-no) Com os estranhos.
ESTRAGON. - (Baixo.) É ele?
VLADIMIR. - Quem ?
ESTRAGON. - Quem vai ser?
VLADIMIR. - Godot?
ESTRAGON. - Claro.
POZZO. - Apresento-me: POZZO.
VLADIMIR. - Que vai!
ESTRAGON. - Disseste Godot.
VLADIMIR. - O que vai!
ESTRAGON. - (A POZZO.) Não é você o senhor Godot, senhor?
POZZO. - (Com voz terrível.) Sou POZZO! (Silêncio.) Não lhes diz nada este nome? (Silêncio.) Pergunto-vos se não lhes diz nada este nome?
(VLADIMIR e ESTRAGON consultam-se  com o olhar.)
ESTRAGON. - (Como quem busca) Bozzo..., Bozzo.
VLADIMIR. - (Igual) POZZO.
POZZO. - Pppozzo!
ESTRAGON. - Ah!, POZZO, vá, vá... POZZO...
VLADIMIR. - É POZZO ou Bozzo?
ESTRAGON. - POZZO...; não, não me diz nada.
ESTRAGON. - (Conciliador.) Conheci uma família Gozzo. A mãe bordava.
(POZZO avança, ameaçador.)
ESTRAGON. - (Vivamente.) Nós não somos daqui, senhor.
POZZO. - (Detendo-se.) Entretanto, são seres humanos. (Coloca os óculos.) Ao menos pelo que vejo. (Tira-se os óculos.) De igual espécie que a minha. (Solta uma enorme gargalhada.) Da mesma espécie que POZZO! De origem divina!
VLADIMIR. - Ou seja.
POZZO. - (Cortante.) Quem é Godot?
ESTRAGON . - Godot?
POZZO. - Vocês tomaram-me por Godot.
VLADIMIR. - Oh, não senhor! Nem por um momento, senhor.
POZZO. - Quem é?
VLADIMIR. - Pois é um ..., é um conhecido.
ESTRAGON. - Mas, vamos, não o conhecemos quase.
VLADIMIR. - Evidentemente..., não o conhecemos muito bem...; não obstante...
ESTRAGON - Eu, certamente, não o reconheceria.
POZZO. - Vocês confundiram-me com ele.
ESTRAGON. - Bem..., a escuridão..., o cansaço..., a debilidade.... a espera...; reconheço... que por um momento... acreditei...
VLADIMIR. - Não leve em conta, senhor, não faça caso!
POZZO. - A espera? Então, esperavam-no?
VLADIMIR. - Quer dizer...
POZZO. - Aqui? Em minhas terras?
VLADIMIR. - Não pensávamos fazer nada de mau.
ESTRAGON. - Tínhamos boas intenções.
POZZO. - O caminho é de todos.
VLADIMIR. - É o que nós dizíamos.
POZZO. - É uma vergonha, mas é assim.
ESTRAGON. - Não HÁ NADA A FAZER.    
POZZO. - (Com um gesto amplo.) Não falemos mais disso. (Tira-o da corda.) De pé! (Pausa.) Cada vez que cai, fica dormindo. (Tira-o da corda.) De pé, carniça! (Ruído de LUCKY, que se levanta e pega sua carga. POZZO tira-o da corda.) Atrás! (LUCKY entra recuando.) Quieto! (LUCKY pára) Volte! (LUCKY volta-se. A VLADIMIR e ESTRAGON, amavelmente.) Meus amigos: sinto-me feliz por tê-los encontrado. (Ante a sua expressão de incredulidade.) Pois claro, verdadeiramente feliz! (Tira da corda.) Mais perto! (LUCKY avança.) Quieto! (LUCKY detém-se. A VLADIMIR e ESTRAGON.) Já se sabe, o caminho é longo quando se anda sozinho durante... (Consulta o seu relógio), durante ... (Calcula) seis horas, sim, justamente seis horas seguidas sem encontrar uma alma. (Ao LUCKY) Casaco! (LUCKY põe a mala no chão, avança, entrega o casaco, retrocede, volta a pegar na mala.) Toma! (POZZO estende-lhe o látego. LUCKY avança e, ao não ter mais mãos, inclina-se e agarra o látego entre os dentes e depois retrocede. POZZO começa a colocar o casaco, mas detém-se.) Casaco! (LUCKY deixa tudo no chão, avança, ajuda POZZO a colocar o casaco, retrocede e volta a pegar em tudo.) O ar é fresco. (Acaba de abotoar o casaco, inclina-se, olha-se, ergue-se.) Látego! (LUCKY avança, inclina-se, POZZO arranca-lhe o látego da boca, LUCKY retrocede.) Já vêem, amigos, não posso permanecer muito tempo sem a companhia de meus semelhantes (olha os seus dois semelhantes), embora só muito imperfeitamente me assemelhem. (Ao LUCKY.) Cadeira! (LUCKY deixa a mala e a cesta, avança, abre a cadeira desmontável, coloca-a, retrocede e volta a pegar na mala e no cesto. POZZO olha a cadeira.) Mais perto! (LUCKY deposita a mala e o cesto. Avança, move a cadeira, retrocede, volta a pegar a mala e o cesto. POZZO senta-se, apoia o extremo de seu látego no peito do LUCKY e empurra.) Atrás! (LUCKY retrocede) Mais atrás! (LUCKY volta a retroceder.) Quieto! (LUCKY detém-se, a VLADIMIR e ESTRAGON.) Por isso, com a sua permissão, ficarei um momento junto de vocês, antes de me aventurar mais adiante. (A LUCKY) Cesto! (LUCKY avança, entrega o cesto, retrocede) O ar abre o apetite. (Abre o cesto, tira um pedaço de frango, um pedaço de pão e uma garrafa de vinho. A LUCKY) Cesto! (LUCKY avança, pega o cesto, retrocede e fica imóvel.) Mais longe! (LUCKY retrocede). Aí! (LUCKY detém-se.) Empresta! (Bebe um gole na mesma garrafa) À nossa saúde! (Deixa a garrafa e fica a comer)
(Silêncio. ESTRAGON e VLADIMIR, encorajando-se pouco a pouco, giram ao redor de LUCKY e olham-no por todo lado. POZZO remói com voracidade a parte de frango e atira os ossos depois de chupá-los. LUCKY dobra-se lentamente até que a mala toca o chão, incorpora-se bruscamente e começa outra vez a dobrar-se seguindo o ritmo de quem dorme de pé).”

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